domingo, 15 de janeiro de 2012

A Pedra Filosofal

Não precisamos nem mesmo nos arriscar sozinhos na aventura, pois os heróis de todos os tempos já foram à nossa frente. O labirinto é bem conhecido só temos que seguir os passos do herói. E onde pensávamos encontrar algo abominável encontramos um deus. E onde pensávamos que teríamos de matar alguém teremos de matar a nós mesmos. E quando pensávamos viajar para fora chegaremos bem no centro da nossa própria existência. E onde pensávamos estar sozinhos, estaremos em companhia do mundo inteiro (CAMPBELL, 2005).

Fábio Carvalho Nunes

O conhecimento nasce do espanto, ou seja, quando o ser humano se assombra com o mundo e indaga sobre a realidade. Platão já dizia que a filosofia nasce do assombro (MAGAEE, 2001), os mitos também irrompiam da perplexidade, dos esforços engenhosos do homem primitivo para explicar o mundo ameaçador e desconcertante à sua volta[1] (FREUND, 2008). A mitologia grega é reveladora a este respeito, como nos ensina Unger (2000), ela nos diz que Íris (a mensageira dos deuses), aquela que faz a ponte entre o homem e sua transcendência, é filha de Thaumas, o espanto. Tanto Platão quanto Aristóteles se reportam a este mito para dizer que o espanto é arché, princípio de criação, de conhecimento. O espanto, a perplexidade permite a irrupção do sagrado, por isso é fonte de criação, porque é uma força desorganizadora, subversiva, titânica (UNGER, 2000). A ciência é filha da tradição sagrada e profana do ato de perguntar, linhagem de Thaumas.  

O princípio fundamental da ciência é a pergunta, o levantamento de uma questão norteia uma série de procedimentos considerados racionalmente adequados para respondê-la. Quando pergunta o cientista é comovido pela mesma inquietação de seus ancestrais: respondê-la. Para responder as questões formuladas o ser humano realiza uma viagem através de seu corpo e mente fazendo emergir intuições e pensamentos, os quais nortearam caminhos a seguir.   

O homem moderno ou pós-moderno inicialmente realiza a mesma viagem que seus ancestrais na busca pelo conhecimento, só que os caminhos para adquirir as respostas são diferentes. O resultado é elaborado e apresentado de diferentes maneiras, contudo sempre através de uma história, de uma narrativa, que pode ser mais ou menos convincente, mas sempre uma história. Por isso, todo cientista é um contador de histórias, elo profundo com as raízes do saber primevo, mesmo que não se dê conta ou procure esconder.

Todo cientista tem um quê de criador de mitos, às vezes no anseio de sacralizar o seu estudo ou algo que ajudou a desvendar. Muitas histórias foram criadas ao longo da trajetória científica, algumas embriagantes, alucinógenas. Talvez a mais embriagante, a capaz de causar as maiores alucinações, diz que a ciência é a única forma plausível de aproximação da realidade, ou pior, que é a única maneira de se alcançar a “verdade”.

Felizmente, “a verdade científica” é provisória e nesse aspecto é também muito similar ao mito. Se a hipótese de Laplace para explicar a origem da Terra e do Sistema Solar não é mais válida, sob que aspectos, como indaga Freund (2008), as teorias outrora cientificamente aceitas são diferentes dos mitos? Felizmente estão despertando desse acorde entorpecente.

Tem-se observado nos últimos anos vários movimentos que estão (re)aproximando ciência, filosofia, arte e religião, fazendo emergir um momento importante para grandes inovações e construções significativas em todos os âmbitos da sociedade. Talvez esse momento oportuno possa ajudar o ser humano a perceber, de fato, que deve preferir o diálogo, respeitar os diversos olhares, escutar os diferentes saberes. Ver através de outras lentes amplia as fronteiras de nossa percepção, de nosso entendimento do mundo, do outro e de nós mesmos. Ampliamos nossa cultura e a visão do real se expande, permitindo que novos paradigmas se instalem (NUNES, 2009).

O diálogo entre os diferentes saberes poderá conduzir a humanidade a um conhecimento singular e mais profícuo da realidade, o que (re)significará a sua existência, possibilitando a construção de relações mais íntimas com o mundo. Como, por exemplo, construir condomínios, praças, escolas, cidades, leis mais justas, mais condizentes com a sociedade se não valorizam os diferentes saberes, se não oportunizam o diálogo, se não consideram a visão e a percepção de mundo dos concidadãos? 

O diálogo entre os saberes poderá conduzir à pedra filosofal, capaz de realizar uma profunda transformação no ser humano. Mas o que é a pedra filosofal? A palavra pedra advém do grego “pétra”, que pode significar superfície rígida que dá suporte. Pedra filosofal pode ser entendida como a “base de um saber notável” ou da sabedoria e que em árabe se diz “al kimia” – a alquímica representaria, por isso, um saber extraordinário, capaz de realizar transmutações. Mas qual a verdadeira força capaz de transformar o indivíduo? De onde pode emergir? Certamente das profundezas de seu interior, através do autoconhecimento.

O autoconhecimento e sua busca alicerçam a humanidade, significam a existência, sinalizam a jornada e apontam para a transcendência, porque amam o conhecimento e tecem teias, redes que apuram sentidos. A verdadeira pedra filosofal está dentro de cada homem ou mulher, por isso o “conhece-te a ti mesmo” é tão profundo, universal, fundamental para a transcendência.  

A busca pelo autoconhecimento é uma das estratégias mais fascinantes e importantes desenvolvidas por nossa espécie e, certamente, conduzir-nos-á a um novo patamar de consciência e de convivência universal. Por isso nossos ancestrais, íntimos conhecedores da alma humana, valorizavam nos mitos histórias que conduziam à reflexão sobre os princípios, valores, sobre a relação com a casa (interior e exterior). 

O ser humano é a natureza tomando consciência de si mesma, como dizia o geógrafo francês Eliseé Reclus, e como natureza é “doce ou atroz”, “manso ou feroz” e caçador de si mesmo. Ás vezes eu penso na Terra como uma escola e no ser humano como seu maior aprendiz. Como todo grande discípulo, questiona o que lhe foi ensinado, acerta e erra tudo ao mesmo tempo, mas o incrível, o incrível é perceber que no caminho ele aprende, aprende inclusive a amar a sua inconstância. Assim, a natureza da qual pertence, vai tomando consciência de si mesma, por isso, eu acredito no futuro, porque acredito na Natureza, que transforma água em vinho, sol em chuva, pedra em ouro, surtos em elixir de longa vida.

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1a edição. 1990. 242p.
CAMPBELL, J. A saga do herói. In: O Poder do Mito. DVD, Estúdio Log On/Culturamarcas, São Paulo, 1a edição. 2005.
FREUND, P. Mitos da criação: as origens do universo nas religiões, na mitologia, na psicologia e na ciência. São Paulo, Editora Cultrix, 2008. 248p.
MAGAEE, B. História da Filosofia. São Paulo, Edições Loyola, 3a edição. 2001. 240p.
NUNES, F. C. Um espaço para a solidariedade: reflexões a partir do livro Ensaio sobre a cegueira. Revista Garrafa (PPGL/UFRJ). , v.19, p.1 - 10, 2009.
UNGER, N. M. O encantamento do humano: Ecologia e espiritualidade. Edições Loyola, São Paulo, Brasil. 2ª edição, 2000. 94p.



[1] Os mitos ainda habitam o cotidiano da humanidade, essa forma criativa de explicar a realidade emerge em todos os âmbitos, nas ruas, nas igrejas, nas escolas, na Academia. Como nos ensina Joseph Campbell (1990), a mitologia é a canção do universo, a música das esferas, música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.

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